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quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Bento que Bento é o frade

Era um folguedo divertido. Sempre que havia tempo vago, entre uma aula e outra, lá estávamos nós a declamá-lo!

— Vamos brincar de Mestre? — era o convite irresistível para um momento de desafio à valentia e um afago no doce sadismo infantil, típico de púberes.

Colagem de iluminuras dos pergaminhos medievais Comentario al Apocalipsis
do Beato de Liébana, e Commentary on Daniel, de Jerome, ambos do século X
(manuscrito Add MS 11695 na British Library, folios 23v, 223 e 228v); ilustrações
distribuídas sob a licença Creative Commons CC0 1.0 pela The British Library.

O primeiro mestre era eleito no Zerinho ou Um, o pleito sagrado das crianças, nunca questionado pelos perdedores. Tão logo empossado, questionava nossa lealdade às suas ordens, recebidas com brados igualmente eufóricos, como fôssemos nobres vassalos de um grande senhor:

— Bento que Bento é o frade!
— Frade!
— Na boca do forno! 
— Forno!
— Tudo que seu mestre mandar?
— Faremos todos!
— Se não fizer?
— Levaremos um bolo

E começavam seus desafios: corra até o muro e volte o mais rápido que puder!, traga-me uma flor branca!, pule cem vezes!, imite uma tartaruga! faça isso!, faça aquilo!

Mas, às vezes as ordens podiam ser mais perturbadoras: puxar o cabelo de alguém que estava fora da brincadeira, sujar a roupa de lama, etc.

Todos queríamos ser mestres, e justamente por isso empenhávamo-nos em cumprir as ordens da melhor forma possível. Era a única forma de ascender e chegar àquela posição de mando, quando poderíamos apresentar desafios ainda maiores e elaborados, além de ir à forra com o mestre anterior.

Pois o folguedo era claro: quem não cumpria a ordem, levava um bolo.

O "bolo" era um tapa na mão espalmada, que apresentávamos ao mestre para a aplicação da pena. O mestre inquiria se o queríamos quente ou frio, uma senha para forte ou fraco. Éramos jovens em busca de autoafirmação, e a pressão para receber o bolo quente era enorme; mas sempre contávamos que ele viria morno, se o mestre fosse um amigo próximo, que o compadrio já começa na infância... E afinal, bolo quente demais poderia ser retribuído na rodada seguinte, quando o mestre se tornasse súdito; o melhor era não arriscar muito no castigo.



A brincadeira é conhecida em vários estados brasileiros. Há registros no Pará, Mato Grosso, por todos o Nordeste, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo... Alguns a chamam "Boca do Forno", "Boca de Forno", "Jogo do Frade" ou "Bento que Bento Frade". Há variantes nas ordens e em suas respostas; provavelmente efeito de um "telefone sem fio", de tradição oral reproduzida de memória por mais de um século, por pais, tios e avós, e irmãos e primos mais velhos.

Cecília Meirelles, João do Rio e outros estudiosos da cultura brasileira mencionaram-na. A origem da brincadeira parece fazer alusão a atos culinários do forno do Frade Bento. No Espírito Santo, em 1876, a estrofe mantinha essa alusão clara: Bento que bento ao frade? / Frade! / Aonde quereis que vade? / Vade! Na bocca do fôrno / Fôrno! Buscar um bôlo / Bôlo!  Isso também de vê numa crônica de 1867, escrita em Taubaté: o Bento que Bento frade já não grita p'ra que se tire os bolos, nas matinas, da bocca de um forno.

Se isso já era comentado nesses termos em 1867, a tradição deve ser ainda mais antiga, dos setecentos ou começo dos oitocentos, provavelmente ligada à colonização portuguesa ou à cataquese, considerando a extensão de seu conhecimento pelo território brasileiro.



Não me recordo quando foi a última vez que brincamos de Mestre. Aos doze anos de idade, já não era mais uma opção de passatempo: o futebol e o vôlei na quadra escolar suplantaram-no. Deixávamos de lado sua ode ao desafio individual e à tirania do mandatário do turno por uma atividade mais coletiva, um espírito de time (embora alguns fominhas ficassem plantados diante na pequena área à espera da bola, como se nada mais importasse na pelada).

Talvez brincadeiras como o Mestre, mesmo tingidas por uma ordem hierárquica, servissem para que treinássemos nossos limites e a empatia perante nossos colegas. Ordens injustas ou profundamente vexatórias seriam repudiadas e o mestre sofreria críticas, como em qualquer sociedade; já as ordens e desafios inteligentes eram recebidos com prazer, pois a diversão consistia justamente em não saber o que seria exigido e surpreender-se com sua própria capacidade de cumpri-lo.

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