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sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Tamatich: o reino dos contos de fadas

Nenhum reino infantil é mais tradicional que o Tamatich. Lá ainda se encontram cavaleiros, damas e comendadores de várias ordens nobiliárquicas, além de pajens, varletes, aias, magos e menestréis, envolvidos em histórias, façanhas e contos que muitas crianças já esqueceram.


Esse grande apego a valores do passado e aos gostos e artes refinados frequentemente leva as crianças do Tamatich — os chamados tamatiscos — a se sentirem superiores às demais crianças dos outros reinos, por julgarem que o Tamatich será sempre o mais poderoso e influente reino de seu mundo. Vem daí a má fama de esnobes e arrogantes que os tamatiscos têm fora de suas fronteiras.

A origem desse sentimento de superioridade remonta à própria formação do reino. Há vários séculos atrás, dois reinos rivais de igual poderio, Tamma e Ticch, gladiavam constantemente um com o outro em infindáveis guerras de bolas de neve, de lama, de frutas e de ovos podres — a depender da estação do ano. Até que o romance clandestino entre um príncipe tammano e uma princesa ticca levou à inesperada união dos dois territórios, criando o reino do Tamatich, uma potência insuperável à época.

Reflexos dessa união territorial de povos rivais ainda são encontrados: há dois idiomas oficiais (neotamano e nortenho), duas capitais (Laleila e Paço), duas escolas filosóficas clássicas (Doma e Verna) e uma silenciosa animosidade entre as crianças provenientes de ambos os antigos territórios rivais.

Mesmo a bandeira tamatisca mostra essa dualidade: as cores oficiais do Tamatich, vermelho e verde, eram, cada qual, as respectivas cores de Tamma e Ticch. O brasão traz ainda o unicórnio dourado, representando o elo do reino com a fantasia infantil.

No Tamatich, as províncias recebem o nome de cores, mas como eles são tradicionalistas, usam nomes um tanto preciosistas ou arcaicos para essas cores: Blau, Doiro, Nívea, Sinople, Goles, Sable e Argenta.

Há muitos locais interessantes neste reino. O mais belo e célebre deles é a Floresta Vermelha, junto à cidade e lago de Estel. É chamada dessa forma porque suas árvores têm folhas de tons quentes, entre amarelo e vermelho escuro, como se ali sempre fosse outono. A coloração dessa floresta faz par aos Prados Azuis, situados ao Norte: uma extensa campina de grama verde-azulada.

Os mais valorosos irão se divertir com os torneios de justa em Verna ou se assombrar com o fantasma do gigantesco castelo de Valindo. Mas se o fascínio é o que te guia, poderá encontrar fadas, silfos e outros seres mágicos na Floresta Velha ou nas Pirâmides de Ferro, recitais de cravo e alaúde em Doma e Paço, ou ainda visitar as fantásticas fábricas de chocolate de Evena.

Só não se esqueça de levar seu escudo, espada e armadura!

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Guaipur: o reino do mar

Ahoy, jovem marujo! Pronto para desfraldar a vela de sua embarcação e sair em busca de mais uma ilha perdida a Oeste? Então seu lugar é Guaipur, o reino onde as crianças têm mais olhos para o mar do que para a terra sob seus pés.

Guaipur situa-se a noroeste do mundo mirim, e faz fronteira com Teres, ao sul, e com o Tamatich, a leste.

Sua capital é Uríano, onde se encontra o maior dos portos. Ela foi fundada pelo lendário Fides junto à confluência dos rios Mandubrim e Guaipur, após sua longa viagem pelo oceano ocidental em busca do pó das estrelas.

Outras cidades importantes de Guaipur são Santor, Gáprala, Bevedir e Rurobriga. São nove as províncias em que o território está dividido: Condado, Selúnia, Costa Norte, Costa Sul, Terradentro, Riacima, Púrpura, a Ponta do Alfageme e o Arquipélago dos Corsários. Quase todos seus habitantes se expressam no falar nortenho, embora se ouça algo do sulino e do tammanor, ao sul.

Quem nasce em Guaipur é chamado de guaipurino. A relação dos guaipurinos com o mar é tão intensa que foi retratada na bandeira e no brasão do reino, ambos os quais exibem um sol poente sobre ondas douradas: uma das imagens tipicamente vistas a partir das praias guaipurinas. As cores nacionais são justamente o azul e o laranja.

A costa de Guaipur é marcada por paisagens variadas: manguezais frios ao norte, seguidos por praias arenosas, falésias, baías cercadas de montanha e floresta e, finalmente, costões marinhos de tirar o fôlego. Há muito o que explorar com sua tripulação! E se piratas surgirem em seu encalço, siga a todo pano e confie na sorte, pois alguma enseada que lhe esconda pode estar logo ao dobrar o cabo.

Mas caso se canse do mar, poderá se embrenhar no Bosque Esquecido em busca de doces frutas, acampar na Costa Sul, caçar borboletas nos Campos em Flor, descer a correnteza num barril em Desce-Pedras, banhar-se na Serra das Cataratas, e muito mais!

O que espera para embarcar?

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

A Guilda dos Cartógrafos

Há pouco menos de um ano, descobri um fórum de internet chamado Cartographer's Guild, que reúne amantes de Cartografia, tanto de mundos fictícios de Fantasia e Sci-Fi, quanto do mundo real. O fórum é dividido em tópicos que cobrem vários aspectos da Cartografia amadora, desde mapas regionais/continentais, a mapas de cidades e de jogos de tabuleiro, toponímia e linguística, além de haver desafios periódicos lançados aos membros para a apresentação de seus projetos cartográficos.

Uma das atrações do fórum são os diversos tutoriais para os principais aplicativos gráficos (Photoshop e GIMP). O forista Ravelis mantém um tópico especialmente voltado para rascunhadores de mapas fantásticos: o Quickstart Guide to Fantasy Mapping.

Diante de tantas opções de tutoriais e ideias novas, resolvi não escolher muito: baixei o primeiro tutorial da lista de Ravelis -- Hand Drawn Mapping (For the Artistically Challenged), criado pelo forista Gidde -- e dediquei-me a adaptar o mapa de O Rei Adulto para esse estilo, que emula um mapa antigo confeccionado a mão.

A rigor, tenho mapas desenhados a mão, como mencionei noutra postagem. Porém, queria aprender técnicas novas no GIMP, bem como produzir um mapa geral que eu pudesse ampliar e ainda assim ter um bom detalhamento. Após umas 60 horas de trabalho, no fim de diversas noites e começos de madrugadas, eis o resultado:


O mapa possui 20 MB. Ao clicar na imagem acima, apenas uma versão de baixa resolução é mostrada. Para ver/baixar o mapa com a resolução original, clique aqui.

A melhor maneira de aprender algo é praticar. No meu caso, praticar o uso do GIMP, que à primeira vista parece muito confuso e inamistoso ao usuário. Um mapa elaborado como esse é produzido pela combinação de diversas camadas: uma para as montanhas, outra para as cidades, outra ainda para a textura, etc. O resultado final levou cerca de 60 horas por conta da inexperiência e da quantidade de camadas. Tudo no tutorial foi novidade para mim; o que acabou servindo como distração às notícias cada vez mais angustiantes desse agosto-setembro.

Agora é hora de escolher um novo tutorial da lista e aprender algo mais do GIMP, pois a situação brasileira não irá se definir tão cedo...

No detalhe do mapa, Eix e a cidade de Lize, em Ístar, palco de eventos curiosamente similares a alguns do Brasil de 2016, embora tenham sido escritos em 2001.


terça-feira, 6 de setembro de 2016

Dois filmes e uma ideia

Quem conta um conto, aumenta um ponto. É o que diz o ditado. Nada mais verdadeiro acerca das histórias. Elas se fundem e se repartem, influenciando-se mutuamente em busca de novas expressões para representar velhos conhecimentos, tão antigos quanto a vida, que passamos adiante às gerações.

A História Sem Fim pode ter sido o catalisador que me instigou a escrever o Rei Adulto. Mas um elemento fundamental do cenário em que costurei a narrativa foi inspirado em dois filmes de gêneros bem distintos, ambos os quais apresentam uma sociedade composta apenas por crianças.

Quando comecei a escrever a história, tinha em mente uma sociedade algo que similar a das crianças perdidas do filme Mad Max 3 Além da Cúpula do Trovão (1985):


Neste filme, crianças abandonadas após uma guerra devastadora unem-se numa espécie de tribo, dividindo entre si as diversas tarefas típicas de adultos, cuidando uma das outras, enquanto se seguram a uma lenda acerca de um salvador vindouro.

Inicialmente, imaginei um contexto em que o protagonista viria de uma região fronteiriça abandonada pelos adultos, lideraria um grupo de aventureiros imaturos como ele e demonstraria seu valor ao matar um dragão que ameaçava uma cidade distante, esta sim habitada por adultos.  Como expliquei noutra postagem, essa ideia inicial não se desenvolveu muito bem e transmutou-se para uma representação mais alegórica do processo de amadurecimento, seguindo um típico mito do heroi.

Apesar disso, elementos desse cenário persistiram no início da narrativa: a cidade inicial Baltar fica numa região fronteiriça a um deserto; e logo no começo da história somos informados que as crianças ao crescerem deixam aquele mundo: "eles se vão", como é dito ao protagonista, o qual chega inclusive a adquirir uma adaga especial contra dragões, na feira de Baltar, por precaução quanto ao que sua jornada o fará encontrar.

A ideia de uma sociedade composta apenas por crianças levou-me a considerar descrever o próprio mundo infantil em si mesmo, aquele que se desenrola na imaginação de crianças, por cujo olhar ele seria a tradução do mundo real.

O tom apropriado para essa sociedade veio, todavia, de outro filme: Quando as Metralhadoras Cospem (1976). Essa produção inglesa mostra uma história de gangsters nos anos 20 encenada integralmente por crianças. As situações típicas da vida adulta são adaptadas à infância e o resultado é magistralmente divertido: as armas dos bandidos e mocinhos disparam bolas de pingue-pongue e tortas, os automóveis são meras carcaças movidas a pé, que lembram os carros dos Flintstones.

No Rei Adulto, essa graça e leveza de Quando as Metralhadoras Cospem se misturaram à representação de sociedade independente das crianças de Mad Max 3 e o resultado é um mundo de fantasia mítica, em que as flechas têm ventosas nas pontas ou trouxinhas de pó de mico, os bacamartes disparam rolhas, os malandrinhos apostam alto no jogo do bafo-bafo, as paredes dos palácios reais são decoradas com creiom e aquarela, entre outros.

Caso nunca tenha assistido Quando as Metralhadoras Cospem, não se faça de rogado (a versão dublada em Português foi deletada do YouTube após a publicação do artigo; substituí-a pela versão em Espanhol):



domingo, 4 de setembro de 2016

A história por trás da estória. III

As diferentes regiões do Mundo das Crianças foram caracterizadas por falares ou dialetos próprios. Esses falares são usados apenas nos diálogos e ajudam a construir o cenário subjacente à trama. A decisão de incluí-los no texto foi fruto de outro longo processo de reflexão e experimentação.

Nos Apêndices de O Rei Adulto apresento seis principais falares/idiomas: o Sulino, o Nortenho, o Neotamano, o Tammanor, o Gandaio e o Abanheenga. Além desses, menciono como falares restritos a comunidades mais reduzidas o Alto Terense, o Astórgico, o Narônico e o Calô. A Lingua do Pê seria um idioma infantil à parte, usado apenas em situações de espionagem ou festivais. Além disso, certos personagens usam idioletos bem marcados.

Em meus manuscritos produzidos entre 1991 e 1997 não havia nenhuma distinção nos falares das crianças de cada reino, nem tampouco idioletos. Toda essa variedade linguística foi introduzida a partir de 1998, devido a dois "ganchos" deixados no manuscrito:
  1. Em 1992, fiz a primeira divisão dos reinos em províncias e escolhi nomes de cores para as províncias tamatiscas. Os nomes da maioria dessas cores foram tirados da heráldica, e não do vocabulário comum do português. Ex: goles (em vez de vermelho), sinople (em vez de verde), etc. Essa escolha foi justificada face um suposto conservadorismo das crianças tamatiscas em comparação às demais.
  2. Meses depois, descrevi as crianças que vivem na floresta de Grínkor: o povo da mata. Provavelmente por influência cultural, representei-os com um quê de índios sulamericanos.
Foi a partir da relação identitária que estabeleci entre o povo da mata e índios que me vi instigado a representar seus diálogos num idioma diferente. Em vez de usar um idioma artificial e completamente arbitrário, decidi que usaria o próprio Tupi Antigo nesses diálogos, como uma forma de valorizar a cultura brasileira. Essa tarefa teve início em 1998, estimulado pela aquisição do recém-lançado Método Moderno de Tupi Antigo, do Eduardo Navarro, que estudei a fundo com o propósito de escrever diálogos tupis gramaticalmente corretos. Nos anos seguintes ampliei o estudo do Tupi Antigo a partir de livros de Lemos Barbosa e Frederico Edelweiss, encontrados em sebos ou na biblioteca da FFLCH/USP.


À época também estudava Alemão e aperfeiçoava a fluência em Esperanto. Estava cada vez mais interessado em Linguística. E um dos livros da FFLCH que acabou prendendo minha atenção foi Estruturas Trecentistas, da Rosa Virgínia Mattos e Silva, que apresentava uma "gramática" do Português de 1300. Emprestei o livro e comecei a lê-lo por mero interesse intelectual. Ao cabo de alguns meses, adquiri um exemplar dele, bem como algumas gramáticas históricas da Língua Portuguesa.

Quanto mais o estudava, mais me perguntava se não poderia também usar o Português Antigo em algum trecho do Rei Adulto. Seria algo associado aos tamatiscos, devido ao seu gosto mais tradicionalista e conservador. Todavia, por essa época, eu já tinha claro que o Tamatich fora formado pela união dos reinos rivais de Tamma e Ticch, um rigidamente espartano e o outro hedonista e filosófico. O Português Antigo não se encaixaria bem na boca de um ticco, mas se adequaria perfeitamente aos tammanos. Ainda assim, considerei que longos diálogos em Português Antigo poderiam soar incompreensíveis ao leitor, devido à quantidade de palavras arcaicas que seria preciso empregar. Por isso, decidi por algo intermediário: um falar artificial, que conteria uma mistura arbitrária de diversas formas gráficas da história da Língua Portuguesa, isto é, seguiria parcialmente a gramática trecentista, teria escrita etimológica, alguns arcaísmos, acentuação gráfica já abolida, entre outros. Assim nasceu o "Neotamano":

— Devemos invadir Ístar e aprisionar tôdalas creanças que usam taes imanes porcarias!

Criei o Neotamano para permitir o uso de algumas estruturas gramaticais antigas, sem prejudicar muito a compreensão da frase. Ele é explicado no universo da história como um falar de compromisso surgido da convivência forçada entre ticcos e tammanos, após a unificação do Tamatich. O Neotamano seria uma evolução do Tammanor, o qual representaria exclusivamente o Português de 1300 e que ficou reduzido a curtos diálogos, que empregam palavras reconhecíveis, ainda que em roupagem arcaica:

 — Deueras importamte, cõ seu perdom. Uossa Ualentia importars’ia de a meu jrmãao mays nouo padrĩhar, qual jrmãao emcorporado aa guarda paaçal oje sera?

Os demais falares surgiram em consequência dessas decisões de incorporar à caracterização dos reinos infantis variantes linguísticas. Assim, tomei o rio Lennx como a grande fronteira linguística natural entre o Sulino e o Nortenho, representados pelos Português Brasileiro e Europeu, respectivamente:

— E eu cá dou de baldar-me justamente quando as coisas começam a ficar divertidinhas? (Nortenho)

— Com’é, não vai me dizer que bicho é esse que leva três semanas pra ser pego por mais de uma dúzia de guris? (Sulino)

Para o Gandaio usei uma modalidade de português informal bastante oral, carregada de gírias, praticada em áreas pobres do sudeste brasileiro:

— Fui só dá um rolé na cidade pra achá algo de comê. Mas os trol viu eu e me cegô dinovo. Logo passa, toda’ zas vez foi ansim. 

Mesmo dentro do Sulino e do Nortenho, espera-se alguma variação ao longo de cada reino, embora mais suave. Destas, a mais evidente fica por conta do Nortenho usado pelos macebóis, que se inspira na ordem sintática e em derivações lexicais do Alemão adaptadas ao Português Europeu, como se fossem crianças que pensam em Alemão mas falam em Português:

— Venho-lhe sopedir que aos viajantes que seus guardas hoje nos limites da floresta aprisionaram liberte.

Uma ordem sintática não natural ao Português também foi usada nos diálogos de crianças do povo da mata quando elas se expressam em Nortenho. Nesse caso, uso ordem sintática e estilo do Tupi Antigo, como se fossem erros naturais de um falante que se expressa em idioma diferente do materno:

— Vos ter como hóspedes nos honra muito. Ficai todo o tempo de vosso querer.

A tabela mostra uma comparação ligeira entre os quatro principais falares da história:

Nortenho Sulino Neotamano Gandaio
mesmo para um cavaleiro mesmo pra um cavaleiromeesmo pera um cavalleiro mermo prum cavalero
Não o conheçoNão o conheçoNom no conoscoNum conheço ele
Fá-lo-ei Vou fazê-loFal-o-ei Vô fazê iss'aí
Também eles se calaramEles também se calaramTambém elles calárom-seEles tumém se calaro
Não há perigoNão tem perigoNom há peligroNum tem pirigo
 O que fazeis aqui?O que fazem aqui?O que acá fazeis?Quê que cês faz aqui?

No mapa abaixo, vê-se a distribuição espacial desses falares no Mundo Mirim: