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segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Usando dialetos para representar a variação linguística em mundos de Fantasia

Alguns autores de Fantasia gostam de marcar de forma bem distinta as diferentes culturas de seu mundo. Em alguns casos mais elaborados (leia-se, tolkianescos), essas diferenças podem chegar ao nível linguístico, envolvendo idiomas distintos e/ou dialetos.

Azulejos na Casa do Barreiro, Gemieira, Viana do Castelo, Portugal. Um poema
de Francisco Sá de Miranda. Licença CC BY-SA 3.0, por José Gonçalves.

A história de Tolkien é conhecida: linguista, criou inúmeros idiomas e, posteriormente, uma história épica que os justificasse. Mas o mais comum é que o escritor crie os idiomas pari passu à criação de seu mundo.

Um idioma artificial usado em obra de fantasia e ficção científica tem lá seus atrativos. Mas, a não ser que o autor seja um novo Tolkien, penso que tal criação deva ficar restrita a poucas, específicas frases. Pois o leitor não dominará o idioma artificial usado na história e, em se depararando com longos parágrafos indecifráveis, terá pouca paciência para prosseguir.

Neste caso, acho mais interessante o uso de dialetos e variantes linguísticas, ainda que algumas sejam um tanto artificiais.

Suponha que em um mundo fantástico, o idioma comum seja o Xyplyzd (ou qualquer outro). Todos entendem o Xyplyzd, mas alguns povos o pronunciam de forma ligeiramente diferente, pois imprimem a ele seus sotaques e vícios linguísticos. Um autor minucioso pode criar a gramática do Xyplyzd e escrever todos os diálogos de sua história em Xyplyzd. Mas talvez tenha dificuldade em encontrar leitores interessados em aprender o Xyplyzd para conseguirem entender a história.

Todavia, esse autor pode pensar doutra forma: todos os personagens em seu mundo fantástico entendem o Xyplyzd, mas a história precisa ser escrita para um público lusofalante (ou anglo-, franco-, hispanofalante, etc.). Nesse caso, podemos considerar que todos os diálogos em Xyplyzd estão apenas sendo representados traduzidos para o Português. Essa ideia permite o uso de dialetos do próprio Português como representantes das variantes do idioma imaginário original Xyplyzd.

Note que não há necessidade de que os dialetos empregados sejam existentes no nosso mundo real, pois o gênero Fantasia dá liberdade para a criação não apenas de mundos fantásticos, mas também de recursos linguísticos fantásticos. Esses dialetos podem refletir características dos próprios povos que não usam majoritariamente o idioma comum. Por exemplo, um povo muito isolado e acostumado a viver em carestia pode ter dificuldade de lidar com o conceito do plural, que não existiria em seu próprio idioma (o qual chamaremos de Zyfd); quando se exprimem no idioma comum, esse traço de ausência de plural acaba contaminando sua fala. Assim, se usarmos o Português para representar os diálogos em Xyplyzd, podemos usar frases sem plural ou com plural errado para representar os diálogos em Xyplyzd dos falantes nativos do Zyfd. Esse exemplo apenas serve para representar que os dialetos usados pelo autor não precisam seguir modelos preexistentes do mundo real.

A principal preocupação do autor deve ser criar dialetos e variantes inteligíveis e coerentes entre si. Precisam ser inteligíveis, para que o leitor apreenda o sentido da frase sem muita dificuldade -- justamente por isso, não se usou um idioma puramente artificial. E precisam ser coerentes entre si, pois o leitor irá exigir isso.

Seja quais forem suas escolhas de representação linguística, elas devem ser justificáveis pela própria história. Um personagem pode falar latim corretamente (se tiver anos de estudo formal) ou de forma errada (se vier de classes mais humildes). Mas, por exemplo, se ele é um anjo em missão na Terra não deveria misturar aleatoriamente palavras em português no meio duma invocação supostamente solene em latim, sem que haja um motivo na história que explique isso. Do contrário, o leitor ficará com a sensação de que é o autor quem, de fato, não sabe latim, e não seu personagem.

Em "O Rei Adulto", uso algumas variantes históricas e regionais para representar os idiomas dos reinos infantis. São cinco os principais idiomas (representados por "dialetos"): o nortenho, o sulino, o gandaio, o neotamano e o tammanor. Usei diálogos escritos em cada um deles. Há uma comparação entre esses dialetos aqui. Para manter a coerência, criei um documento com as "regras" de cada um desses dialetos, para me ajudar a separá-los. Feito isso, separei todos os diálogos de um determinado dialeto em um documento próprio (por ex., um documento de diálogos nortenhos, outro para diálogos sulinos, etc). Depois, corrigi todos diálogos de acordo com o conjunto de regras correspondentes. Por fim, após a correção, incorporei diálogo por diálogo, em sua posição devida no livro. Essa descrição pode dar a impressão de ter sido algo muito trabalhoso, mas foi menos do que tentar corrigir os diálogos isoladamente ao longo da história, mesclando regras gramaticais de cada parágrafo à medida que se sucedessem.

Se tiver interesse em verificar o resultado final, adquira seu exemplar de O Rei Adulto. Se já o leu, deixe aqui seus comentários!

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