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domingo, 24 de setembro de 2017

A Guerra das Águas

 

As crianças sempre viviam em clima de guerra, e raro foi um ano passar totalmente em paz. Muitos sabichões tentaram precisar as causas dessa hostilidade, mas só conseguiram descobrir que toda criança parece possuir predisposição para qualquer tipo de combate e que tal natureza bélica é mais evidente em meninos. As guerras parecem ter sido uma das atividades mais populares entre as crianças.

Dizem as lendas que tudo começou com uma bolinha de papel tacada, por ninguém sabe quem, em alguém que parece não ter gostado. Esse único fato gerou a Primeira Guerra das Bolinhas de Papel, também chamada “A Mãe das Batalhas”.

As batalhas foram se tornando mais sofisticadas a cada ano, e todo um arsenal era desenvolvido. Os reinos lançavam-se nos conflitos por qualquer provocação, sem medir consequências. Há registros de Guerras de Espumas de Sabão, de Lama, de Bolas de Neve (famosas guerras sazonais de inverno), de Tinta, de Frutas e Ovos Podres (que podiam empregar frutas e ovos frescos, quando os podres acabavam), de Carrapichos, de Sementes de Mamona, Caroços de Azeitona, Almofadas, Amêndoas, etc., além das nobres e irresistíveis Guerras de Bolinhas de Papel.

Mas os conflitos não se restringiam apenas ao lançamento desordenado das coisas que davam nome à guerra. Nos bastidores dos palácios havia uma complicada rede de espionagem e alcaguetagem que colhia fofocas, espalhava boatos e sabotava os planos dos inimigos. Alguns reinos possuíam até um batalhão de feiticeiros para garantir vitória plena e rápida.

Consta ter havido uma única Guerra das Águas, ao menos em tempos recentes. Oficialmente, ela teve início quando Azei, príncipe ístaro recém-coroado, em viagem diplomática por Landau, foi recebido com um balde de água fria, arremessado por desconhecidos de cima dum prédio. Profundamente irritado, Azei prometeu que iria à forra. Meses depois, ele deu início à guerra, ao invadir o Sul de Landau com grande exército, munido de pistolas aquáticas, metralhadoras de jato d’água e granadas hidráulicas. Foi o estopim para um grande conflito, que rapidamente se espalhou aos demais reinos.

Inicialmente, cada soldado levava às costas um barril de água para garantir que houvesse munição disponível. Mas as primeiras batalhas e o entusiasmo das tropas demonstraram que era necessária uma quantidade maior de água. Quase simultaneamente, os reinos iniciaram a construção de piscinas próximas às zonas de conflito, para abastecer os exércitos. E assim foi levada a guerra, durante cinco anos, sem que qualquer reino obtivesse vantagem significativa.

Até que uma manobra desleal foi tramada por Ístar: o represamento do Lenx, o enorme rio que cruza diversos países em sua viagem ao mar. A tática ístara era dupla, uma vez que, ao mesmo tempo em que impedia que os reinos ribeirinhos renovassem seus estoques aquáticos, ainda possibilitava aos ístaros guardar somente para si a preciosa munição. Quando o Lenx secou, a tramoia dos ístaros foi revelada e a guerra tomou novo rumo. Eicsos, tamatiscos e landaucos tentaram de todas as formas impedir o represamento, fosse diplomática, fosse subversivamente, mas sem êxito. Para piorar a situação, Teres resolveu também represar os rios que nasciam em seu território, sob a alegação de serem patrimônio nacional.

Para que a guerra fosse mantida, os reinos que não tinham nascentes iniciaram a apropriação de poços, lagos, lagunas, lençóis d’água e tudo mais, numa atitude de desespero, declarando-os confiscos de guerra e impedindo o acesso à plebe. Alguns soldados, isolados no campo de batalha, só podiam lutar com o pouco que tinham à mão, o que na maior parte das vezes era o próprio xixi.

O poder de fogo dos reinos montanhosos era, entretanto, indiscutivelmente maior. Ístar demonstrou-o ao tomar de assalto de uma só vez todo o reino de Eix (e dizem que sem derramar uma gota d’água sequer!). No sudoeste tamatisco, Teres iniciava uma série de conquistas, e, ao Norte, Guaipur, que contava com infinitas reservas da terrível água salgada, por arder nos olhos, ocupou a Selúnia e avançou sobre Púrpura.

Mapa do conflito

Mas as consequências não tardaram a ser sentidas. A seca assolou os reinos do Tamatich, Landau e boa parte da Macebólia, arruinando a agricultura e a pecuária. Deu-se início a uma feroz Guerra Civil de Pedras e Cascalhos pelo controle de poços e fontes de água. Nas montanhas, Teres e Ístar experimentaram, por sua vez, as piores enchentes já vistas em todo o mundo, ocasionadas pelo represamento dos rios. As enchentes destruíram fazendas, castelos e cidades, fazendo aparecer terríveis pestes.

O reino que parece ter sofrido menos na guerra foi Guaipur. Esse fato foi largamente utilizado pelos guaipurinos como atestado de vitória, e ainda o é, muito embora os sabichões especializados no evento afirmem que, no cômputo geral, a Guerra das Águas não apresentou vencedor. As razões apresentadas pelos guaipurinos são que seu reino não sofreu enchente; que falta d’água foi um assunto cogitado apenas por aqueles que procuravam desculpas para não tomar banho; e que nenhum outro reino poderia barrar-lhes o avanço para o sul, pois estavam mais equipados e em maior número.

Passados anos após o último combate da guerra, tendo os reinos infantis em sua maioria se recuperado, deu-se início na cidade de Estel del Baixo Goles, no Sul tamatisco, a conferência de paz que viria a ser chamada Trégua Seca.

As consequências mais importantes da Guerra da Águas e da Trégua Seca foram: o enfraquecimento do Tamatich como potência líder do mundo das crianças; a queda da monarquia landauca, vítima da revolução civil que implantou a primeira e, por muito tempo, única república infantil de que se tem notícia; a anexação de Eix ao território ístaro; e a criação das províncias tuteladas, também chamadas províncias-reféns.

Parte do texto acima foi publicado no apêndice A Guerra das Águas, em O Rei Adulto, vol. 1 - Oeste. Compre seu exemplar aqui!

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