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sábado, 27 de agosto de 2016

A história por trás da estória. II

A maioria das histórias de fantasia envolve mapas, especialmente quando se desenrolam em mundos fictícios. O grande modelo deste gênero, às vezes chamado de Alta Fantasia, foi Tolkien, que desenvolveu em profundidade seu universo, interligando cronologia, raças, idiomas e cultura num rico contexto mitológico.

No primeiro artigo desta série, descrevi como a narrativa de O Rei Adulto foi sendo lentamente desenvolvida em paralelo a eventos da minha vida pessoal. Neste, contarei um pouco sobre a gradativa construção do mapa deste mundo.


Comecei a escrever sem um mapa, em 1991. Afinal, toda a ação de início estava centrada em uma única cidade, que chamei de Birtad (atualmente, Baltar). O primeiro mapa foi rascunhado poucos dias após eu começar a escrever, para representar os topônimos que eu ia criando ao longo dos diálogos. Tal mapa surgiu como uma necessidade para que eu não me perdesse, evitando erros de continuidade, bem como para me guiar com ideias acerca das regiões que poderiam ser exploradas pela aventura.

O primeiro mapa foi feito numa folha de caderno universitário, assim como o texto vinha sendo escrito. Vem daí seu formato retangular característico, que optei por não mudar depois. Nele o Mundo Mirim só tinha fronteira bem estabelecida a Norte, no rio das Lágrimas. Nas demais direções, o mapa não se encerrava, dando a entender que poderiam haver novas terras ou reinos infantis à leste, sul e oeste. Posteriormente, aumentei o litoral a Oeste e adicionei um deserto ao Sul, ficando o Leste limitado por montanhas além das quais nada se conhecia (ao menos entre as crianças do Oeste). O mapa era muito grosseiro, feito em uma única cor, o que logo o tornou de difícil consulta. Decidi substituí-lo por outro um pouco mais elaborado, em que as cores me ajudavam a diferenciar cidades, províncias, reinos, estradas, florestas, etc. Acabei descartando o primeiro mapa, mas guardei todos os seguintes.

Um mapa de mundo imaginário não se constrói inteiro de um dia pro outro. Especialmente no caso em que a história ainda está sendo elaborada, o enredo levará a mudanças que podem afetar a disposição dos elementos de relevo ou os topônimos. Quando o mapa é desenhado pela primeira vez, há uma mundo inteiro a ser nomeado; frequentemente os topônimos disponíveis são mais numerosos do que aqueles que serão efetivamente usados na narrativa. Nesse momento, é muito fácil escolher topônimos que posteriormente nos parecerão insossos, ingênuos ou desagradáveis. A solução é mudá-los por outros que nos soem melhor. Com isso, o mapa acaba precisando ser emendado e corrigido. Em pouco tempo, ele se torna novamente confuso e um outro mapa precisa ser feito, incorporando todas as modificações, as quais também precisarão ser registradas em listas para permitir a consulta frequente e evitar erros de continuidade na narrativa.

Desta forma fui criando um terceiro mapa em 1992, mais enxuto, e depois um quarto mapa -- esse maior e bem mais detalhado, que me guiou na construção da narrativa entre 1993 e 1999.

Em 1997, a aquisição do meu primeiro computador pessoal me levou à digitar toda a história então manuscrita; e comecei também a experimentar produzir outros mapas com a ajuda de algum software gráfico. Dei atenção a mapas "históricos" e regionais, que ainda não tinha desenhados à mão.


Por serem posteriores ao "quarto mapa", os mapas regionais acabaram tendo um pouco mais de detalhes. Um desses mapas regionais, o de Ístar, guiou-me nos capítulos finais escritos entre 1999 e 2001.


Finalmente, em meados de 2001, produzi os mapas desenhados a nanquim que foram incorporados às duas edições independentes já feitas.


Mas mesmo depois de tantos anos, ainda me vi modificando um ou outro topônimo desses mesmos mapas já em sua versão digitalizada... Tolkien também anotou e modificou seus mapas diversas vezes antes de publicá-los. Criar mundos pode ser divertido, mas não é simples. Ao menos, temos mais do que meramente o sétimo dia para descansar e refletir sobre as próximas mudanças.

domingo, 7 de agosto de 2016

A história por trás da estória. I

Um história de Fantasia épica, escrita em português, ambientada num mundo povoado apenas por crianças? Como surgiu tudo isso?

Às vezes causa surpresa a amigos, alunos e colegas de profissão a revelação de que escrevi um livro de Fantasia. Essa surpresa é ainda maior quando atentam para o tamanho do livro (242 mil palavras) e para o período em que ele foi escrito: ao longo de 10 anos, entre 1991 e 2001. Durante a década do desenvolvimento desse projeto, três grandes, imprescindíveis, etapas da vida acadêmica, tomaram meu foco elaborativo: o TCC do curso de graduação, em 1993; a dissertação de mestrado, em 1996; e a tese de doutorado, em 2000.

Em postagem anterior, expliquei que O Rei Adulto começou a ser escrito após eu ler A História Sem Fim, de Michael Ende. Antes disso eu já escrevia poesias e alguns contos e vinha tentando elaborar alguma história mais longa, mas invariavelmente não conseguia desenvolvê-las além de algumas páginas. À época, eu jogava RPG e, inspirado pelo livro de Ende, cogitei escrever uma aventura sobre um menino que enfrentaria dragões -- um tanto clichê, é verdade... Mas aconteceu algo diferente: a estória que eu comecei a rabiscar ganhou asas e foi fluindo, tomando um rumo próprio, afastando-se dos dragões. Eu senti que cada personagem, de certo modo, tinha vida própria e fui deixando que suas personalidades se manifestassem e me conduzissem. 


No primeiro ano, eu manuscrevia a estória nas folhas não usadas dum caderno universitário. A imagem acima é uma fotografia da primeira folha desse manuscrito, juntamente com um índice preliminar que eu ia completando à medida que novos capítulos iam sendo elaborados. Muito dessa primeira folha foi aproveitado na versão final de O Rei Adulto, mas várias correções, acréscimos e o amadurecimento da escrita enriqueceram a narrativa:

(antes) "A vila Birtad respirava um outro dia de mercado. As ruelas estavam lotadas de gente que acorriam de toda parte para comprar, vender ou trocar."

(depois) "Começava um novo dia de feira em Baltar. Em ocasiões como essa, a cidade era tomada por flâmulas coloridas, desfraldadas das janelas dos casarões mais nobres. As ruelas se apinhavam de crianças acorridas de todos os cantos de Teres. A praça principal tornava-se um azafamado empório ao ar livre, onde se vendia e se comprava quase tudo

No começo de 1992 eu consegui comprar uma máquina de escrever portátil e dactilografei as primeiras quarenta folhas manuscritas em laudas. Essa tarefa me deu a primeira oportunidade de reescrever, ampliar e corrigir parágrafos inteiros dos primeiros capítulos, alguns dos quais estavam anotados e rasurados no manuscrito. Todavia, logo percebi que era mais difícil desenvolver novos capítulos diretamente na máquina de escrever e tornei a manuscrever.

Entre 1993 e meados de 1995, o ritmo da escrita diminuiu consideravelmente. Esse período corresponde ao fim da graduação na UFRJ e começo do mestrado na USP. As demandas da vida acadêmica forçaram essa pausa, mas a vida dos personagens também tinham me levado a um longo impasse: eles tinham acabados de ser presos em Lyrnyra, capital da Macebólia, e eu precisava encontrar uma forma de tirá-los de lá. Esse incidente introduziu um novo elemento à história: um antagonista. Até então, a história se desenvolvia como uma série de crônicas de viagem. A cada um ou dois capítulos, o grupo de crianças em busca do rei Adulto chegava a uma nova cidade, uma série de novos personagens era apresentada e um caso ou mini-história particular era desenvolvida. Em Lyrnyra, a história passou a se desenvolver como um confronto entre o grupo de Êisdur versus o príncipe Soslaio e o uso das plantas de imaginar.

Em 1996, os aventureiros finalmente chegam a Eix e um novo impasse surge, que coincide com a necessária pausa para eu finalizar minha dissertação de mestrado. Desta vez, o impasse fica por conta do romance que vai surgindo entre Harsínu e Ctara e de grande cuidado para mantê-lo dentro da temática do mundo mirim.

Em fins de 1997, comprei meu primeiro computador pessoal e passei a digitar todo o material que se encontrava manuscrito ou dactilografado. Tal como em 1992, aproveitei para reescrever trechos e padronizar vários nomes e topônimos que foram mudando à medida que os anos passaram. Só após digitar tudo de Teres a Eix, encontrei uma solução para o impasse entre Harsínu e Ctara e prossegui no manuscrito. Mas não demorou muito a que eu passasse a escrever os capítulos posteriores diretamente no computador.

De 1999 a 2001, várias mudanças ocorreram. O conflito entre o grupo de Êisdur e o "grupo" de Soslaio intensificou-se e recrudesceu. O tema "plantas de imaginar" ganhou tanto destaque quanto o próprio tema "Rei Adulto" e os capítulos escritos nesse período acabam por caracterizar quase um livro em separado. O texto já digitado foi várias vezes corrigido e editado e alguns capítulos foram incluídos entre os dez capítulos iniciais, após eu considerar que certos vínculos afetivos entre as personagens precisavam ser mais bem construídos.

Em 2001, com viagem marcada para iniciar um pós-doutorado nos EUA, impus a mim mesmo que a estória precisava ser concluída. E fiz um esforço final entre janeiro e maio de 2001 para completá-la. 

O Rei Adulto é uma estória sobre o amadurecimento. Durante sua produção, tanto as personagens, quanto seu próprio autor amadurecem. Isso teve um efeito inesperado, embora positivo, na narrativa: talvez, se eu a tivesse escrito toda em 1991, não conseguiria entender e descrever o problema a que me propunha, pois não teria ainda a vivência necessária.