Compartilho aqui a entrevista que dei ontem no IV FLAL. Para acessar o bate-papo que ocorreu após a entrevista, clique na postagem abaixo.
Neyd Montingelli: Qual seu gênero literário? E estilo, tem um próprio ou é baseado em escritores famosos?
O gênero principal da minha escrita é a Fantasia. Suponho que tenho um estilo próprio, embora este se forme da mistura dos estilos de alguns escritores famosos que muito me influenciaram, notadamente Michael Ende, J. R. R. Tolkien, Monteiro Lobato, Clarice Lispector, Milan Kundera e Cecília Meirelles. Meu livro “O Rei Adulto” trata a infância como uma aventura pela qual todos passamos, como se fosse de fato um mundo encantado, com seus reinos e castelos, monstros e conflitos intermináveis, embora divertidos. A chegada à adolescência é representada por um gradual alheamento das crianças e pela travessia do temido Rio das Lágrimas, que marca a fronteira de seu mundo, além do qual se inicia o mundo dos adultos. Por conta disso, classifico este livro em particular como uma obra de “fantasia alegórica”. Todos os elementos de um clássico de fantasia épica estão ali: mapas, povos diferentes, seres fantásticos, magia, inimigos, batalhas, uma busca que movimenta todo o mundo infantil, mas esses elementos podem ser igualmente tomados como representações psicológicas de situações da infância e da angústia que um menino tímido sente ao perceber que está amadurecendo.
FLAL: Por que escolheu escrever para um público infantil? Teve algum motivo? Quais cuidados os escritores devem ter ao escrever para crianças? Que assuntos nunca devem ser abordados numa história infanto-juvenil?
“O Rei Adulto” é uma obra sobre a infância, mas não necessariamente para crianças. Escrevi-o tendo como alvo principal um público com idade entre 12 e 30 anos, especialmente os que gostam de aventura ou joguem Role Playing Games. Ele representa a infância aos olhos de quem já passou por ela, como se fosse um convite a relembrá-la, divertir-se, chorar e torcer pelos personagens pela identificação com sua aventura. E uma reflexão sobre o que levamos da infância à vida adulta. Certamente, imagino que outros leitores podem vir a se interessar pela história, incluindo crianças, dada sua temática geral. Mas não busquei uma linguagem mais próxima às crianças, pois escrevi principalmente para um público mais escolarizado. Ainda assim, encontrei durante o processo criativo algumas questões pertinentes a essa pergunta, pois meus personagens são crianças e, por conta disso, vários aspectos da natureza humana não se adequavam à história. Tive de considerar com muito cuidado como representaria nelas especialmente a maldade, a ganância e a sexualidade. Lembrar-se dessas situações em minha própria infância me ajudou a encontrar o tom. Quanto a que assuntos nunca devem ser abordados numa história infantojuvenil, acho que todos os assuntos podem ser abordados, desde que no tom e linguagem apropriados.
João Augusto: Em sua obra, os personagens são fictícios ou reais? De onde veio sua inspiração para criar os personagens principais?
Todas as personagens são fictícias, mas certos traços de suas personalidades podem se inspirar pessoas que conheci. São sete as crianças que compõe o núcleo principal de personagens de “O Rei Adulto”: o caçador Êisdur Árland, o ladrão Wáldron Gastrano, a contadora de histórias e herbalista Marsena Sterinax, o cavaleiro Harsínu Sterinax, o mago Áymar Resphel, o mascate trambiqueiro Ernesto Molicári e a tenente Ctara Bergrak. Suas idades vão de 6 a 13 anos, e cada qual tem suas motivações, algumas das quais não são muito óbvias no começo da história. Seu grupo é capaz de uma diversidade de funções, tal como um grupo de RPG, mas cada personagem foi desenvolvida em grau diferente, na medida em que apoiavam a linha principal da história.
Fer Lima: Qual seu personagem preferido?
Destes, o preferido é Wáldron, o ladrãozinho. Além de ser o caçula do grupo, é o mais arisco e desbocado. Ele representa tudo o que eu mesmo não conseguia ser quando era criança, e justamente por isso acabou ganhando minha afeição.
Gislene Mattos: Seu livro nasce de uma inspiração do seu eu para o mundo ou observação da realidade?
Acho difícil fazer uma separação estrita entre o que é totalmente interior (um olhar do autor para si mesmo) e do que é totalmente exterior (o autor descreve a realidade a partir de suas opbservações), uma vez que um autor não está isolado de seu meio e este, por sua vez, só pode ser “traduzido” e “interpretado” com base no arcabouço prévio cognitivo do autor, o que inclui intelecto e empatia. Eventualmente, podemos dizer que certas obras são mais introspectivas, outras mais extrospectivas. Penso que “O Rei Adulto” está num meio termo, uma vez que a história usa uma descrição imaginária para representar aspectos reais da vida, assim como o fez Michael Ende em “A História Sem Fim” e “Momo”.
FLAL: O que você procura passar para seus leitores em suas histórias?
Miro bastante os exemplos de Michael Ende e Monteiro Lobato. Ambos escreviam para crianças e colocaram muitas considerações filosóficas em suas obras, que simultaneamente eram histórias e gatilhos para reflexões humanísticas. Em particular, os livros de Michael Ende vão além do gênero infanto-juvenil, pois a compreensão de muitas de suas alegorias e valores requerem uma vivência que jovens ainda não têm. Desenvolvi em “O Rei Adulto” essa característica de história e mensagem acerca do valor da amizade, da colaboração entre rivais para compormos um mundo melhor e mais justo, entre outras. Além disso, há muito humor na história: estamos falando sobre uma sociedade totalmente composta por crianças que decide compor uma expedição para encontrar o lendário rei adulto. Muita coisa dá errado, num contexto puramente infantil, e disso vem boa parte da graça. Quero que meu leitor se divirta. Quero que ele gargalhe, devore as páginas com ansiedade para, em seguida, reflitir sobre o que leu. Quero que meu texto o inspire a ser criativo, tal qual Michael Ende me inspirou.
Michelle Paranhos: Quando você escreve direciona sua história de forma a agradar seu público-alvo? O público-alvo é uma preocupação para você?
Não escrevi especificamente para agradar um determinado público, mas tampouco para desagradar qualquer outro. Escrevi o que queria transmitir: a história em seus termos. Por exemplo, desejava que os diálogos de crianças provenientes de reinos distintos representassem vividamente essa variedade cultural. Então, decidi marcar cada cultura por uma variedade da língua portuguesa, desde uma arcaica, uma etimológica, uma brasileira, outra europeia, até a variante informal das classes pobres dos subúrbios de cidades brasileiras. Poderia ter simplificado a linguagem usada nos diálogos. Isso provavelmente agradaria mais pessoas; eventualmente aumentaria o número de leitores. Porém, me pareceria um texto pasteurizado, sem alma. Busquei ser fiel ao meu gosto literário. Considerei escrever uma história que eu mesmo gostaria de ler, caso o autor tivesse sido outro. Foi apenas este o meu norte.
FLAL: Você gosta de ambientar suas histórias no Brasil?
Embora faça uso de mapas, o cenário de meu livro não se situa num local geográfico do planeta Terra, nem tampouco doutro planeta. Ele descreve cenários fictícios que representam paisagens imaginárias às quais as crianças se transportam em suas brincadeiras. Em nossa cultura, a preponderância de histórias de contos de fadas, largamente inspiradas no folclore europeu, deu ao mundo de “O Rei Adulto” um aspecto medieval, mas há uma grande mistura de culturas, que me permitiu incluir vários temas do aspecto brasileiro, como a cumacanga, lendas indígenas, um erê, além de referências a folguedos infantis. Mesmo não havendo referência direta ao Brasil, é uma história colorida pelo olhar brasileiro.
Gislene Mattos: Que gênero você começou escrevendo? E como desencadeou em outros gêneros?
Eu comecei escrevendo apenas poesia, especialmente poesia metrificada. Ainda era adolescente e a maioria dos meus poemas são meras lamentações e queixas dessa idade. E na verdade a poesia tinha para mim esse propósito de permitir cristalizar a frustração e aliviar minha angústia. Ao fim da adolescência, experimentei dificuldade em verbalizar os sentimentos através da poesia, como vinha fazendo. Foi nesse momento que busquei outras formas de expressão. Inicialmente, o desenho. E, em seguida, prosa.
FLAL: Quanto tempo demora para escrever um livro?
Não creio que haja uma resposta única para essa questão. Há pessoas que sustentam ser possível escrever um livro em poucos dias. O que posso afirmar é que dificilmente um livro escrito em tão poucos dias poderá ser denso o suficiente para me cativar como leitor. Suponho que todo o trabalho para montar o enredo, diálogos, narrativa, dar vida às personagens, etc, deva levar uns bons meses. No meu caso, levei dez anos para escrever “O Rei Adulto”, entre meus 19 e 30 anos. Demorei em parte porque tinha os compromissos com minha carreira de astrônomo, mas também porque precisava amadurecer a história e entender o que era essa personagem lendária chamada rei adulto sobre a qual eu me propunha a escrever. Afinal, não é possível escrever sobre o amadurecimento, quando se ainda é imaturo.
Natali Felix: Como você organiza seu processo criativo: decide o que vai ser escrito, por onde começar e quais serão as fases?
Comecei a escrever essa história quando ainda era muito jovem. E não sabia aonde ela me levaria. Fui deixando que ela me conduzisse de forma um tanto caótica nos dois primeiros anos de seu desenvolvimento. Nas pausas, entre novas linhas escritas, refletia sobre os acontecimentos que tinha narrado e imaginava o desenrolar do enredo, os aspectos culturais de cada reino que coloquei no meu mapa, etc. Passei a anotar todas essas considerações periféricas e guardar numa pasta. A partir de metade do livro escrito, passei a delinear esquemas mais complexos, pois a própria história pedia isso: um calendário de eventos, um plano mais claro para o crescimento interior de algumas personagens, etc. Em fóruns de novos escritores, leio muitos preocupados em delinear desde o começo as fases, a linha principal, entre outros. No meu caso, não fiz isso. Talvez tivesse me facilitado, se eu seguisse essa metodologia desde o começo, mas sequer a conhecia. A história foi se construindo na medida em que dialogava mentalmente com essas personagens.
Paula Lessa: Quando estava escrevendo partilhava a história com alguns familiares?
Sim, meus primos e uma tia foram quem primeiro conheceram algumas das histórias contadas em “O Rei Adulto”. Depois, foram os amigos mais próximos.
Maria Eduarda Razzera: Como você utilize as plataformas digitais e redes sociais para promover o seu trabalho?
Eu busco ter presença nas principais redes sociais: facebook, blogspot, instagram, youtube e twitter. Cada uma delas tem uma linguagem específica. No blogspot, eu mantenho um blog (http://oreiadulto.blogspot.com) que agrega notícias e informações gerais sobre o livro, seu processo criativo, etc. No instagram @reiadulto, posto regularmente as ilustrações e mapas que produzo usando o software Gimp. O twitter e o facebook funcionam como distribuidores desse material, pois neles posto tanto as imagens e ilustrações quanto as chamadas para o blog. Pelo facebook também distribuo esporadicamente postagens de outros autores, devidamente identificados, sobre fantasia e literatura, em geral. No youtube, postei dois book trailers. O número de curtidas na página ou visualizações no blog cresce com o tempo. Tento postar alguma coisa a cada semana, em pelo menos uma dessas redes. A interação ainda é pequena. Na verdade, poucos leram o livro, pois está publicado apenas como ebook e esse formato não é muito popular. Mas o importante é que o nome do livro e sua sinopse estão se tornando conhecidos. Isso é fundamental para criar um grupo de pessoas interessadas em sua história e mostrar a uma editora comercial que há vendabilidade.
Michelle Paranhos: O que significa sucesso literário para você?
Ser lido, entreter e inspirar positivamente os leitores.
FLAL: Conte um pouco de suas experiências ao enviar seus originais para aprovação de uma ou mais editoras? Há autores que acreditam que esses não são lidos e que, passado um tempo, elas mandam a resposta de recusa padronizada. Você também?
Enviei o original de “O Rei Adulto” a algumas poucas editoras. Com exceção daquelas que esperam contrapartida do autor, as outras não responderam ou enviaram uma mensagem de recusa que, de fato, parece genérica. Obviamente, as editoras devem receber muitos originais e talvez não deem conta de todos. Já me disseram que apenas as 10-15 primeiras páginas são lidas. E que é nelas que a editora determinará se fará uma avaliação melhor da história ou não. Ainda assim, a resposta foi tão genérica, que duvido que algo tenha sido lido. Era uma resposta do tipo “a editora não trabalha com obras desse gênero, e isso não era verdade, eu podia citar pelo menos 6 clássicos muito vendidos do mesmo gênero no catálogo dessa editora.
Alan Ramos: Qual o melhor conselho pra quem quer ser um novo escritor?
Seja um leitor frequente. Leia muito, mas não apenas o seu gênero favorito. Trate o idioma com carinho, pois ele é sua ferramenta.
Gislene Mattos: Para adquirir o hábito de escrever acredito que é preciso motivação e persistência. Você pode contar um pouco de sua trajetória como venceu ou ainda vence os obstáculos para ter o hábito da escrita?
A motivação é fundamental: você precisa ter uma história que julga que vale a pena contar. A persistência é o outro lado da moeda: você precisa dedicar seu tempo a essa história, e à vida de suas personagens. É preciso método, tirar um tempo por semana para ficar sozinho, diante do caderno ou do computador, traduzindo para o papel as histórias que você tem na mente. Se num dia programado para isso não houver condições de escrever, pegue um caderno de notas e apenas rabisque ideias soltas sobre a parte do enredo que está difícil esmiuçar, ou ideias sobre situações futuras que pretende incorporar num próximo capítulo. Ou então desenhe, mesmo que seu traço seja vacilante. O desenho expressa de forma sintética várias situações e contextos que a escrita expressa de modo analítico. Frequentemente, um desenho pode servir de gatilho para novas ideias. Note que a persistência para escrever uma história não impõe que você esteja sempre, nos dias programados, escrevendo. Você pode estar parado, imaginando, planejando, fermentando as ideias até que estejam prontas para serem escritas.
Danieli Mutzenberg: Como conseguir um agente literário? Quais as maiores estratégias para isso?
Sou agenciado pelo Fernando Cardoso, da Agência Literária AZO. Antes de conseguir esse agenciamento, procurei várias agências. Algumas cobravam um preço muito alto, outras nem responderam o contato inicial. Antes de ser agenciado pela AZO, eu tinha a sensação de que o agente literário só receberia algo se o livro fosse publicado. As coisas não funcionam assim, e demorei a me dar conta de as únicas agências que podem se dar ao luxo de atuar dessa maneira são aquelas que trabalham com autores conhecidos e que vendem muito (ou que venderão potencialmente muito, como no caso de youtubers conhecidos). As agências menores, que tratarão seu livro com mais carinho e atenção, precisam de algum pagamento inicial, pois o/a agente tem despesas reais até mesmo para conseguir divulgar seu livro. O que posso recomendar a um novo autor é que busque o contato de agências literárias, verifique o catálogo dessas agências, considere o custo inicial do agenciamento em comparação com a experiência do/a agente.
Neyd Montingelli: Tem livro em produção independente? Tirou o ISBN deles?
Antes de ter um contrato com a Agência Literária AZO, publiquei “O Rei Adulto” numa tiragem independente de 50 volumes. Não tirei ISBN dele por supor que isso poderia prejudicar alguma futura publicação comercial. Na verdade, não tenho certeza se prejudicaria. Mas independente de ter um ISBN, seu livro produzido de forma independente precisa ser registrado no escritório de direitos autorais da Biblioteca Nacional, para garantir a autoria de seu original.
FLAL: Como você vê o futuro da Literatura Brasileira?
Não vejo as editoras comerciais atuais interessadas na Literatura Brasileira e em seu futuro. Infelizmente, elas guiam-se pelo lucro rápido. Justamente por isso apostam principalmente em obras estrangeiras, mesmo quando a qualidade de várias delas é menor do que outras nacionais. Ao pensar na literatura do século XX, sabemos de escritores que participavam de movimentos literários, um após o outro, e eram publicados e lidos no auge desses movimentos. Parece-me que nada parecido com isso existe no Brasil desde os anos 60. A escola não trata de literatura contemporânea, e os meios de comunicação não discutem, ao menos em termos nacionais, os movimentos literários contemporâneos, seus expoentes, etc. Vivemos uma era em que alguns poucos nomes, ainda com raízes no século XX, despontam como unanimidades, mas falta uma referência de conjunto. Suponho que ainda existam movimentos literários e seus participantes, mas isso agora se restringe à academia, aos círculos mais cultos, e está fora da órbita da imprensa, das grandes editoras e, por conseguinte, de grande parte da população brasileira. Acho isso um tanto desmotivante.
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