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terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Um conto de Fantasia em Tupi Antigo

"Fundação de São Vicente", por Benedito Calixto de Jesus.
Acervo do Museu Paulista da USP

Quando avançava na escrita de meu livro, em meados dos anos 90, planejava a elaboração de vários pequenos apêndices que serviriam como expansão à história principal. Em 2001, após 10 anos de projeto, decidi que era hora de terminá-la e resolvi incluir apenas os apêndices já redigidos. Um desses foi escrito integralmente em Abanheenga (Tupi Antigo), em homenagem aos caaporas, e aborda a guerra que os dividiu em torno da função desempenhada pelas meninas como líder máximo das aldeias.

Os dois livros com
os quais aprendi
o Tupi Antigo.
Esta história é contada de forma resumida por Amanara, no Capítulo 15 de O Rei Adulto. O apêndice "Marana Ka'aporubixapaba Resé" estendia-a um pouco mais. A ideia de escrever um pequeno conto em Tupi Antigo veio do desejo de usar esse fascinante idioma em um texto moderno, revitalizá-lo, apresentá-lo aos leitores como um tesouro cultural genuinamente brasileiro, algo que nos caberia preservar. À época, a chegada de Cabral ao Brasil completava 500 anos, e a publicação do livro Método Moderno de Tupi Antigo, do Prof. Eduardo Navarro, pela editora Vozes, alimentava meu ímpeto nacionalista.

Escrever o conto seria um desafio duplo: testar meu conhecimento do Tupi Antigo, adquirido pelos livros de Navarro e do Pe. Lemos Barbosa, bem como traduzir num idioma antigo um conto de Fantasia, de um mundo diferente daquele habitado pelos tupiniquins e tupinambás.

Esse apêndice foi incluído na edição independente que lancei em 2015, mas não faz parte da edição atual lançada pela AZO. Decidi deixá-lo de lado porque a proposta atual é simplificar a edição para viabilizá-la a um público maior. Além disso, poucos apreciariam o apêndice posto que não o entenderiam, já que não viria com a tradução. Considerei que é mais adequado apresentá-lo aqui, no blog.

Segue abaixo o apêndice em Tupi Antigo e sua tradução ao Português. Quem já leu o livro poderá comparar com a história contada no Capítulo 15. Em linhas gerais, é a mesma história, mas com algumas informações adicionais.


Marana Ka'aporubixapaba Resé A Guerra pela Liderança dos Caaporas

Oîepé serã r’a'é, ka'á-gûasu-pe, s-era Grínkor tab-usu-pe, marã’-mboxy o tyb-amo. O-pokó’-pokok o îo-esé pitang-etá, ka'apora s-er-y-ba'é. Kó marana nd’o-îkó-é-î marana amõ tetirûã suí, i typ-ag-ûera Mitanga 'Ara. Moîekosup-aba s-esé-te i aîbĩ-ngatu ka'apora supé, i 'anga mombok-ypŷ-á-bo, i pûerab-e'ymb-aba kori îé.

'Y-maran-usu riré i ypy-û. Grínkor îe-ekó-monhang-aba, ka'apora r-emi-motar-eté-puku, îa-î-moarûab Siles, Macebólia R-ubixab-ĩ, ka'apora pytybõ-mbûera i xupé îepé. Marã’-monhang-etá riré nhõ-te ka'apora îekosub-i amõ îe-r-ekó-aba r-esé. Macebólia R-ubixab-ĩ-te ka'apora o-î-pe'á-pá-potar, o emi-motara ka'á-gûasu asŷaba r-esé o-î-á-bo.

Aîpó ka'apora o-î-moaîu-katu. Grínkor-y-pe opá-katu tab-ubixaba mor-ubixá’-kunhã nhe'eng-apîar-i. A'é t-ekó-monhang-ara opá t-ubixaba sosé, opab-ĩ-inhẽ taba o-î-mono'ong-y-ba'é. Siles r-emi-motara aûîé o-î-á-bo-mo, ka'apora r-ekó-bé-saba mondygûer-i-mo.

Ka'á-gûasu-bo, tab-ubixab-etá aîpó ro'yrõ-û. Oîepé taba nhõ-te, Gûarinĩndaba s-er-y-ba'é, aîpó nd’o-î-ro'yrõ-î, o ubixaba kunumĩ-maramotara, Akangatã s-er-y-ba'é.
Akangatã nd’o-î-potar-i o ubixaba nhe'eg-apiá, i kunhã-namo r-esé. Kó ri, Macebólia-ygûara r-e-r-ekó-û mũ-namo.

Ka'á-gûasu i pe'á-pyr-a t-etama mokõî r-upi. Gûarinĩndab-ygûara o-gû-ar t-etam-usu, t-urusu-eté s-ekó-bé-sag-ûera suí. A'é-riré, Akangatã o-akasang-ityk-ityk-ypy mor-ubixá’-kunhã mor-ubixab-amo s-ekó-monhang-aba kunumĩ sosé. O atã r-e-ro-bîar-usû-á-bo, Akangatã gûarinĩ-ybyrá-par-etá Macebólia-ygûara r-eyîa-no mondyb-i, Ybyra'oketá-pe s-e-ro-gûatá-bo, i pogûyra r-asag-ûã’-me. O-î-mo'ang opá amõ taba r-ekó og upi, mor-ubixá’-kunhã îabapa bé-no, mor-ubixab-e'ym-amo taba r-eîá’-saba.

Emonã s-ekó-e'ym-i. Pogûyra i me'eng-y-pyr-ûera kunhã supé, ta kunumĩ o-nho-marã’-monhang ymẽ, ka'apor-ubixá’-gûapyk-aba potá. O morubixá’-kunhã r-esé, ka'apora r-ero-bîar-i. Opá amõ ka'apora tab-usu o-nhe-mũ morubixá’-kunhã supé: Ema'ẽ, Ybyra'oketá, Ybytyratá, Ipopirasuí, Tukatu, Sugûypirangapé.

Akangatã gûasẽ’-me Ybyra'oketá supé, nhe-rana r-obaîtĩ o supé bé o emi-arõ-mbûera sosé. Taba o-s-arõ kaysá-ybaté, morubixá’-kunhã mũ r-emi-monhang-ûera. Akangatã mũ t-atá-u'uba o-gûe-ro-epenhan, mokab-usu o-î-mopok, opá ybyrá-patagûi mombapa biã.

Pitang-etá o-îo-gûe-r-ekó Ybyra'oketá-pe. Marana s-o'ó-etá o-î-mosykyîé, i kûara motyg-ûé, pytu'u-e'ym-amo i moîngó-bo, Ka'a'anga Py'aoby monharõ-mo. Tyg-ûera s-etá: ybyrá s-apy-pyr-ûera, s-o'ó iî ybõ-mbyr-ûera gûarinĩ ambyasy-asy r-esé, 'y upaba-no o-îkó s-ugûy r-emi-mopirã’-mbyr-amo. Ka'a'anga Py'aoby ka'apora o-s-aûsub-usu, a'é-reme-te opá-katu mokanhẽ’-momboî ka'á suí, marã’-moangaîpaba r-esé.

Ybyra'oketá arõ-ana nd’o-syî, nd’i aûîé-î sumarã supé, i popesûa’-katu r-esé îepé.

Marana 'ara amõ riré, Akangatã o eîtyk-e'yma kuab-i, o-îeby Gûarinĩndaba pupé. Kunumĩ-maramotara taba-îar-amo o-îkó-potar, tobaîar-amo-te r’akó s-ekó-û.

Maran-iré, ka'apora t-etama r-ár-i bé, Siles r-emi-me'eng-ûera tobaîara supé.

Kori ka'apora tobaîara îo-e-r-ekó-bé-katu-û.

Pereba-te s-asy îé. S-asy serã îepi.


Diz-se que uma vez, na grande floresta, cujo nome nas cidades grandes é Grínkor, uma guerra torpe aconteceu. Muitas crianças lutaram umas com as outras os chamados caaporas. Esta guerra não foi diferente de outras quaisquer que ocorreram no Mundo das Crianças. Mas suas consequências foram muito ruins para os caaporas, dividindo pela primeira vez sua alma, ferida que ainda não hoje não sarou.

Isso começou após a Guerra das Águas. A Independência de Grínkor, longamente desejada pelos caaporas, foi obstada por Siles, Príncipe da Macebólia, apesar da ajuda que os caaporas lhe prestaram. Somente após muitas batalhas, os caaporas obtiveram alguma autonomia. Mas o príncipe macebol buscava dividir completamente os caaporas, bem como repartir a grande floresta.

Esses caaporas o incomodavam muito. Em Grínkor, todos os chefes de aldeia seguiam a morubixaba-menina. Ela era a que fazia as leis sobre todos os chefes, a que reunia todas as tabas. Se o desejo de Siles se realizasse, o modo de vida dos caaporas seria destruído.

Pela floresta, os chefes das aldeias recharam isso. Mas uma única aldeia não o fez, aquela de nome Guarinindaba, cujo chefe era um menino briguento chamado Akangatã.
Akangatã não queria obedecer sua morubixaba, por ser ela uma menina. Por isso, ele aliou-se aos macebóis.

A grande floresta foi dividida em duas regiões. Os habitantes de Guarinindaba receberam um território muitas vezes maior do que aquele em que viviam. Depois disso, Akangatã começou a lançar dúvidas sobre a liderança da morubixaba-menina sobre os meninos. Confiando muito em sua própria força, Akangatã reuniu uma multidão de seus arqueiros e de macebóis, fazendo-os marchar até  Ybyraoketá, para trespassar suas defesas. Pensava que teria o apoio de todas as outras aldeias e que a morubixaba-menina fugiria, deixando sem liderança o trono da aldeia.

Não aconteceu assim. O poder fora dado às meninas, para que os meninos não mais lutassem entre si para tomar o trono caapora. Os caaporas confiavam em sua rainha. Todas as outras grandes aldeias caaporas aliaram-se à morubixaba-menina: Emaém, Ybyraoketá, Ybytyratá, Ipopiraçuí, Tukatu, Suguypirangapé.

Quando Akangatã chegou a Ybyraoketá, encontrou uma resistência muito maior do que esperava. Protegia a aldeia uma enorme caiçara, construída pelos aliados da morubixaba-menina. Os companheiros de Akangatã lançaram flechas de fogo, dispararam bombardas, destruindo toda a paliçada, mas em vão.

Muitas crianças combatiam entre si em Ybyraoketá. A guerra matou muitos animais, arrasando suas tocas e  asfixiando-os, deixando o Espírito da Floresta irritado. Eram muitas as destruições: as árvores que foram queimadas, os animais que foram flechados devido a fome dos guerreiros, os rios e lagos que ficaram tingidos de sangue. O Espírito de Floresta amava muito os caaporas, mas depois disso ameaçou expulsar todos da floresta,por causa da guerra perversa.

Os defensores de Ybyraoketá não recuaram, não se renderam aos inimigos, embora estes estivessem bem armados.

Após vários dias de guerra, Akangatã reconheceu sua derrota, retornando para Guarinindaba. O menino guerreiro queria ser o tabajara, mas na verdade tornou-se o tobajara.

Após a guerra, os caaporas tomaram de volta a região que Siles tinha dado aos tobajaras.

Atualmente, os caaporas e os tobajaras vivem bem um com os outros.

Mas a ferida ainda dói. Talvez sempre doerá.

NOTA: Na tradução, as palavras tabajara/tobajara compõem um trocadilho em Tupi: tabajara significa "chefe da taba", enquanto tobajara significa "inimigo".

2 comentários:

  1. Respostas
    1. Uma composição de ka'aysá (caiçara, cerca) + ybaté (alta), para representar uma fortificação alta. A grafia de ka'aysá apresenta a variante kaysara e kaysã. Agora que me pergunta, me dou conta de que provavelmente deveria ter escrito ka'aysá-ybaté ou kaysar-ybaté. Como já faz 20 anos que escrevi esse texto em tupi, não me recordo por que escrevi especificamente como kaysá-ybaté.

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