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domingo, 29 de outubro de 2017

Role Playing Games e a aventura imersiva

Estreou nesta semana a segunda temporada da famosa série Stranger Things, que alia monstros, aventura e suspense no melhor estilo dos anos 80. Uma das referências que a série faz é ao jogo Dungeons & Dragons (D&D, para os íntimos), o pai de todos os jogos de RPG. Logo no primeiro capítulo, os quatro meninos da trama são vistos enfrentando no jogo o Demogórgon, uma das criaturas do universo de D&D. Esse é justamente o nome que eles dão ao monstro do Mundo Invertido que captura o jovem Will e passa a atacar sua cidade nos capítulos seguintes. Como se estivessem imersos na aventura criada pelo próprio jogo, os meninos transportam para a realidade os inimigos e o conflito que anteriormente enfrentavam apenas com dados de 8, 10 e 20 lados. Se as referências imersivas forem mantidas na segunda temporada, devemos esperar para os capítulos vindouros o aparecimento da Tessálidra, o monstro multicabeçudo que finaliza a partida de RPG que eles jogavam, no último capítulo da primeira temporada.

Quem nunca jogou RPG pode ter dificuldade em compreendê-lo. Não se trata dos jogos eletrônicos inspirados em RPG, mas sim do clássico RPG "de mesa".

É um jogo, mas não há tabuleiro? As regras são mesmo descritas em vários livros e compêndios? Qual o objetivo, afinal? São algumas das perguntas que os não iniciados costumam fazer.

Um Role Playing Game pode ser melhor entendido se traduzirmos seu nome em inglês: Jogo de Representação ou Jogo de Atuação. Trata-se de um jogo em que os participantes representam papeis ou atuam, de modo a permitir que uma história seja contada de modo interativo e imersivo. Os participantes são personagens dessa história e agem como se ela fosse real, no momento da partida. Não é necessário um tabuleiro, mas regras pré-estabelecidas servem para resolver conflitos e ações, que incluem desde a recepção a uma abordagem pessoal até manobras em combate e dano conferido por determinada arma. Um sistema de RPG é um conjunto dessas regras, reunidas de forma consistente com a abordagem do jogo. Não é obrigatório, mas frequentemente um sistema de RPG é publicado com um mundo próprio ou um cenário de aventuras. Por exemplo: o sistema D&D foi concebido para aventuras medievais do tipo "caça ao monstro", o antigo MERP foi ajustado para aventuras na Terra Média de Tolkien, enquanto o Storyteller privilegia a narração e a atuação sobre o mero combate, num mundo sombrio repleto de vampiros, lobisomens e outros seres inumanos. Também há sistemas genéricos, que podem servir para diversos cenários, como GURPS e D20. Em todos esses casos, um jogador atua como mestre do jogo, sendo o responsável pela narração do cenário, controle dos personagens coadjuvantes, solução dos conflitos, etc. Embora não haja um tabuleiro, é comum o uso de uma folha coberta por uma grade de células hexagonais, que pode ser sobreposta a um mapa, e é usado para controle de situações táticas.

RPGs costumam ser a porta de entrada de um escritor iniciante às histórias de fantasia. A própria necessidade de imersão da aventura pode estimular nesse escritor a característica (ou vício?) de construção de mundos. Para alguns, a construção de mundos é uma atividade levada tão a sério, que acaba destruindo os elementos fantásticos da narrativa — afinal, se exigirmos 100% de realismo dum mundo de fantasia, não há espaço para a magia. 

O escritor Chuck Wendig também acredita que um escritor iniciante pode aprender muito numa mesa de RPG. Em jogos de RPG, o mestre do jogo precisa lidar com os conflitos entre as personalidades diferentes dos jogadores que estão atuando; isso é um grande laboratório para o escritor aprender a contar histórias. Sua audiência está ao lado à espera de uma boa história e contribui para ela, dando ao escritor/narrador aspectos novos da situação que ainda não tinham sido considerados.

Escrever um livro requer habilidade para descrever, elaborar cenários, situações e montar um enredo que cative o leitor. O mestre do jogo tem os mesmos desafios, mas tem liberdade para fazê-lo por meio de palavras, desenhos e objetos visando prender a atenção e obter colaboração de seu grupo de jogadores. Ambos trabalham com a criatividade e justamente por isso uma geração inteira de escritores de fantasia e atores admitem ter sido inspirada pelo velho Dungeons & Dragons, incluindo George R. R. Martin.

Apetrechos de meu antigo grupo de RPG MERP/Rolemaster.

Devo ter jogado D&D propriamente dito apenas uma vez na vida. Minha experiência com RPG iniciou-se mesmo com o Middle Earth Role Playing Game (MERP) e seu "sistema pai", o Rolemaster. Meu grupo de RPG jogava na Terra Média, na península do Andrast e nas planícies costeiras de Anfalas, por volta de 1085 T.A.. Gondor era governada por Hyarmendacil I. Escolhemos um período obscuro da cronologia de Tolkien para termos mais liberdade de ação no jogo.

Era uma atividade realmente imersiva, que frequentemente extrapolava o tempo da partida e se tornava assunto para conversas ao longo da semana. Das demandas da atividade de mestre do jogo, recebi estímulo para aprender a desenhar mapas, estabelecer cenários, narrar lutas, conceber artefatos. Também aprendi a envelhecer papel, encadernar, modelar personagens em durepox, confeccionar runas, entre outras coisas. O RPG e a aventura semanal foram estimulos constantes ao uso da criatividade para tornar ainda mais imersiva a história para meus personagens. Houve momentos em que usei até mesmo música ambiente para incrementar a campanha.

Muitas vezes, a criatividade necessita estímulos. Uma partida de RPG oferece justamente essa pletora de estímulos, ao nos colocar atuando em contextos completamente diferentes de nosso dia a dia.

Cena do capítulo X de meu livro O Rei Adulto, que lembra mais claramente uma
partida de RPG. As aventuras das crianças em busca do irmão mais velho de
Êisdur, que abandonou o Mundo Infantil após chegar à adolescência, pode deixar
o leitor com a impressão de que toda a história é uma partida de RPG que se
desenrola na imaginação delas.

O RPG de mesa funciona como a mediação entre o instinto de construção de mundos do mestre do jogo e a fantasia inesperada trazida pelos jogadores. Uma campanha de RPG não têm fim pré-estabelecido, há apenas o cenário construído pelo mestre, no qual os jogadores atuarão e buscarão as glórias das façanhas dignas de serem narradas como lendas.

Qual sua relação entre RPG e literatura? Comente abaixo.

Se você nunca jogou RPG e interessou-se, pode baixar as regras básicas do jogo gratuitamente neste endereço.

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